quinta-feira, 28 de março de 2013

POEMA DO MENINO JESUS por ALBERTO CAEIRO


 



Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
(...)

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

(...)

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

(...)

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

quarta-feira, 27 de março de 2013

PIRUETAS por CHICO BUARQUE DE HOLANDA


Uma pirueta
Duas piruetas
Bravo, bravo
Superpiruetas
Ultrapiruetas
Bravo, bravo
Salta sobre
A arquibancada
E tomba de nariz
Que a moçada
Vai pedir bis


Quatro cambalhotas
Cinco cambalhotas
Bravo, bravo
Arquicambalhotas
Hipercambalhotas
Bravo, bravo
Rompe a lona
Beija as nuvens
Tomba de nariz
Que os jovens
Vão pedir bis

No intervalo
Tem cheirim de macarrão
E a barriga ronca
Mais do que um trovão
Quero um prato
Cê tá louco
Quero um pouco
Cê tá chato
Só um pedaço
Cê tá gordo
Eu te mordo
Seu palhaço
Olha o público
Cansado de esperar
O espetáculo não

segunda-feira, 25 de março de 2013

VERBOS por FÁBIO MONTEIRO


Sempre gostei de verbos. Na maior parte das vezes não conseguia conjugá-los no futuro, soavam como imprevisíveis e incertos. Gostava dos tempos passados e suas regularidades na memória. O pretérito imperfeito gerava uma curiosidade de erro e  dúvida sobre o ocorrido, já o mais que perfeito a certeza de memórias indeléveis e distantes.

Gostava de verbos de movimentos; pular, correr, jogar, namorar, viajar, dançar. Tinha admiração pelos difíceis irregulares ser e ter. Sempre confundia a importância do ser com a necessidade do ter, e nessas confusões escolhia o primeiro, compreendendo a importância de projetar o outro.

Estudar não era um verbo de movimento, enquadrava-se nos verbos de necessidade, junto com comer e dormir, aliás com reconhecidos charmes. Apontava para um futuro tão incerto quanto as regências estudadas.

Verbos e suas transitoriedades eram sempre bem vindos. Perguntava o que ou quem? E logo vinha um complemento que significava compartilhamento. Verbos nas suas intransitividades, solitários na sua composição. Por exemplo, o verbo ir, tantas vezes usado e abusado; Foi tantos, foi embora, foi. Nada mais, no máximo um adjunto complementar que não nega a essência da ação.

Verbos e suas intransigências. Lembro-me em tentar decorá-los para a chamada oral. Todos tinham dez minutos iniciais para finalizar um decoreba para a resposta na ponta da língua. Tensão da espera. A professora chamando um a um na frente de sua mesa. Rezas para que perguntasse sobre o que eu tinha mais segurança. Mas, na sequência, no estalar de uma pronúncia impecável da Professora Fátima, quase sempre respirava errado e perdia a sequência entre salivas e desesperos. Iniciava com Eu, mas quando chegava o Vós, passava impessoal demais. Era o momento de reconhecer minhas impossibilidades e limites.

sábado, 23 de março de 2013

CANTIGAS PARA EMBALAR por FÁBIO MONTEIRO









As cantigas para infância, presentes nas minhas brincadeiras de pequenino, eram exercícioS contínuos de memória e prazer; em algumas músicas a sincronia com palmas e avessos delas, com algumas, estalava os dedos e logo em seguida uma piscada e outras mais simples; era só pra passar o tempo. 

Adoleta

Lê peti peti polá, lê café com chocolát

Adoleta


Sempre variávamos nosso repertório musical entre as que eram para rodar,


Ciranda Cirandinha

Vamos todos cirandar

Vamos dar a meia volta

Volta e meia vamos dar


Esperar,


Cai cai balão, cai cai balão

Na rua do sabão

Não Cai não, não cai não, não cai não

Cai aqui na minha mão !


Brigar,


O Cravo brigou com a rosa

Debaixo de uma sacada

O Cravo ficou ferido

E a Rosa despedaçada


Enamorar,


Se eu roubei, se eu roubei seu coração

É porque tu roubastes o meu também

Se eu roubei, se eu roubei teu coração

É porque eu te quero tanto bem


Repetíamos por horas e horas com danças e festas. E quando caia a noite, no silêncio e calmaria de uma rua feita de barro, entoávamos as de embalar o sono.

Confesso que ainda recorro nas noites longas a minha predileta.


Boi, Boi, Boi
Boi da cara preta
Pega essa menino que tem medo de careta!
 

sexta-feira, 22 de março de 2013

FELICIDADE CLANDESTINA por CLARICE LISPECTOR


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas.

HISTÓRIAS ROCABOLESCAS DE MADAME VALESCA por JONAS RIBEIRO


domingo, 17 de março de 2013

AMAR por CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE





Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

sexta-feira, 15 de março de 2013

CARMELA CARAMELO por CRIS ROGÉRIO





Minha avó se chamava Carmela e eu tinha 3 anos quando ela faleceu, mas sempre ouvi muitas histórias sobre ela. Foi uma das minhas fontes inspiradoras! Mas, na verdade, a Carmela são muitas mulheres em uma só. Minha mãe, por exemplo, teve um jeito de me criar com muita brincadeira. Gostava de contar histórias... Também pensei em outras avós e mães. O que todas elas têm em comum é que são pessoas leves. Era isso que queria para a Carmela, uma personagem que pareça uma pessoa real, com dias bons e ruins, e que leve isso numa boa.

Fonte: entrevista da autora para a revista crescer em 2012
 

quinta-feira, 14 de março de 2013

CABELUDINHO por MANOEL DE BARROS






Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regência verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disilimei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia a nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. 

quarta-feira, 13 de março de 2013

SONETO DE SEPARAÇÃO por VINÍCIUS DE MORAIS


UM DIA DE SOL por FÁBIO MONTEIRO




Hoje me deu vontade de mar. De areia nos pés, sorvete de limão,
banho de praia.
Veio um calor de verão e a brisa soprava, soprava.
Água de coco, sol escaldante, guarda sol.
Hoje senti uma irresistível vontade de mar.
Mar de ressaca de ondas gigantes, que invade a geografia e derrama
sua espuma sob o chão, molha como se lambesse a terra.
O isopor cheio de lanches para o dia inteiro; misto de queijo com
mortadela, bolo de cenoura.
Garrafão cheinho de refrigerante gelado. Brincadeiras na areia com o
disco voador, dribles e chutes para o gol, descanso com a barriga
apontando para o céu.
Vida melhor não tinha! Aquilo tudo era nosso e de nosso mesmo só a
liberdade.
Hoje deu vontade de areia quente nos pés. De voltar a um tempo de
caramelo, de lua e estrelas.
Vontade de soprar feito brisa,  correr feito água que foge dos pés,
gritar para o tempo:

 - Eu sou sol!

O dia desenhou seu contorno de praia livre,

Sol escaldante e fiquei a espera de uma lua redentora que suba no
céu, desenhando contornos tão sublimes que passa feito filme em tela
grande.

Feito as memórias de criança que ardem em todos os verões.

OU ISTO ou AQUILO por CECÍLIA MEIRELES




 
Roda na rua
a roda do carro.
Roda na rua
a roda das danças.
A roda na rua
rodava no barro.
Na roda da rua
rodavam crianças o carro, na rua.

terça-feira, 12 de março de 2013

CARTA por CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE






Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesma envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a tua menina, que a sol-posta
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes é tanta
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

VOZES ROUBADAS por MELANIE CHALLENGER E ZLATA FILIPOVIC








Meu nome é Piete. 

Não direi qual é meu verdadeiro nome, pois é muito estúpido. Vou dizê-lo, sim; é Elfriede, Frieda (Frieda é o limite do ridículo!)... Eu tenho doze. Moramos com minha avó em Schneidmühl, na província de Posen. Minha mãe tem uma escola de música em Berlim. 

[...] Hoje é dia 1º de agosto de 1914. Faz muito calor. Começaram a colher o centeio no dia 25 de julho, já está quase branco. Quando passei por um campo essa noite, colhi três ramos e fixe-os sobre minha cama com uma tachinha. 

A partir de hoje a Alemanha está em guerra. Minha mãe me aconselhou a escrever um diário sobre a guerra: ela acha que ele poderá me interessar quando eu for mais velha. É verdade. Quando eu tiver cinquenta ou sessenta anos, aquilo que tiver escrito quando criança deverá parecer estranho. mas será verdadeiro, pois não se deve contar mentiras num diário. 


14 de agosto de 1914

Agora há barricadas nas pontes das nossas estações de trem. Por toda parte há sentinelas. Nas pontes, há cartazes que dizem "dirija devagar!". todo motorista é interrogado e todo veículo, revistado. Ninguém que esteja atravessando uma ponte pode demorar-se sobre ela. Trens militares passam por sob as pontes. Subitamente tem-se a sensação de que o inimigo está bem próximo [...]

segunda-feira, 11 de março de 2013

EU SEI, MAS NÃO DEVIA por MARINA COLASANTI

 

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.



FICO À ESPERA... por DAVIDE CALI E SERGE BLOCH




 




Fico à espera de crescer...




Fico à espera... narra a trajetória de um homem, da infância à velhice, conduzindo o leitor de forma comovente pelo tempo que passa sem pedir licença, pelas coisas que esperamos, não importa a idade. Poderia ser a história de qualquer um. O livro traz momentos como a guerra, o casamento, a perda de um parente querido, o afastamento dos filhos, o nascimento de um neto. Um pequeno fio de lã vermelho percorre página a página todas as emoções: emaranha-se quando está bravo, esconde-se quando está com vergonha, estica quando quer crescer, e se quebra na separação. A narrativa provoca uma reflexão sobre a continuidade da vida. Ao ler essa espécie de álbum de memórias, a sensação é de gostosa nostalgia. Um livro para ler sem esperas.  

Fonte:EDITORA COSACNAIFY


domingo, 10 de março de 2013

CADÊ O JUÍZO DO MENINO? por TINO FREITAS




PAI, NÃO FUI EU por ILAN BRENMAN

 





Estava sentado no silêncio do meu escritório escrevendo uma história, e de repente, CATAPUM!, uma coisa pesada caiu no chão. Ia abrir a porta para ver o que tinha acontecido, quando ouvi minha filha dizendo:

-Pai, não fui eu, foi o leopardo!

MATERNIDADE E LITERATURA por ALESSANDRA ROSCOE

  Divulgação


Desde do nascimento de sua primeira filha, em 1998, a jornalista Alessandra Roscoe não para de se deliciar com os inusitados comentários e situações que vivenciava em casa. Na medida em que seus três filhos estão crescendo, histórias reais e fictícias não param de pipocar em sua casa. Em 2004, Alessandra usou uma delas para publicar seu primeiro livro infantil, A Menina que Pescava Estrelas (Ed. LGE). Sete anos depois da estreia, a autora já reúne dez livros publicados, a maioria deles inspirada em passagens vividas em família. Além de escrever, a jornalista dedica-se também à leitura e contação de histórias para idosos e para bebês. Conversamos com Alessandra para entender melhor a abrangência de seu trabalho e saber o que ela está preparando de bom para seus leitores... 


Leia a entrevista na íntegra:
http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI227677-10460,00.html

 Fonte: Revista Crescer 
 




Blog da autora:    

http://contoscantoseencantos.blogspot.com.br/



sábado, 9 de março de 2013

VENTO por ELMA









Neste livro da ilustradora Elma, é tanta delicadeza em cada página que, ao fechar o livro, há a nítida sensação de que uma brisa soprou realmente durante a leitura. Na história sugerida, uma mulher vai estender a roupa no varal e, em seu balaio, além das peças, estão seus três filhos prontos para brincar. A imaginação deles corre solta, livre como uma brisa, e eles flutuam por paisagens, penduram-se em árvores. Passarinhos os carregam para bem longe e os levam de volta até o varal da mãe, que os aguarda. 
  Divulgação

Livros só de imagens, ao contrário do que geralmente se pensa, não são voltados apenas para bebês. Esta história exemplifica bem isto. É um tipo de leitura que permite crianças e adultos se tornarem bons observadores de imagens. Uma chance de encontrar as histórias que elas trazem, as possibilidades que apresentam. É como uma bela fotografia: facilmente pode tocar o coração do espectador.

Fonte: Revista Crescer

VELHA HISTÓRIA por MÁRIO QUINTANA


SEM PALMEIRAS OU SABIÁ por BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS


 

Minha cidade não tinha luz. A luz cheia, de vez em quando, clareava com o luar o arrraial. Cada família buscava uma maneira de quebrar o escuro, conforme suas posses: lampião, luz de carbureto, lamparina, vela, candeia. Se não possuía luz, a água também era pescada nas fundas cisternas e transbordava nos filtros, nos potes, nas bacias. E minha mãe sempre achava que a água fazia mais falta do que a luz.

Se eu roubei, se eu roubei seu coração
É porque, é porque te quero bem
Se eu roubei, se eu roubei teu coração
tu roubaste, tu roubaste o meu também.

Um dia, com bem mais de três anos, meu pai me disse:

- É hora de ir para a escola para você aprender três coisas: ler, escrever e contar. 
- Pai - eu disse -, já sei escrever nos muros da igreja, sei soletrar no livro da missa e contar os dias da semana sem falar a palavra feira: anteontem, ontem, hoje, amanhã, depois de amanhã, sábado e domingo. 
- Não é tudo - ele respondeu. - É preciso escrever em linha reta e com pena, para não apagar; ler coisas de outros mundos e contar o tempo da vida.

Fragmento: Sem palmeiras ou sabiá - Editora Peirópolis

UMA GALINHA por CLARICE LISPECTOR




Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

DESLEMBRAR por LUCIANO PONTES





sexta-feira, 8 de março de 2013

MULHERES por FÁBIO MONTEIRO





Nesse dia, não quero falar dos mistérios femininos, mas.

Minha mãe desdobrava-se nos paradoxos de uma vida de doação aos filhos e na certeza da manutenção de sua essência feminina. Transitava com uma intranquilidade invejável, mas competente, entre as tarefas do lar e os compromissos do ser. Brava e encantadora, tinha uma essência tão pura que o peso maior ficava por conta dos valores que carregava,  e nas suas solidões de desejos, mãe, mulher , esposa, era forte como uma leonina e estava sempre em prontidão.

Minhas irmãs e sobrinhas, não fugiram à genética. Dividem-se no limiar do ser e estar. São, um essência única,  na integridade da palavra, na beleza da vida, na esperança que não cessa. Lutam feito mães, brigam pela vida, encantam-se com a simplicidade de uma vida tão complexa. Estão, presentes como o tempo, não se intimidam com o tamanho da montanha, acordam cedo para ver tudo de perto.

Minhas amigas, mulheres na sua integridade e peculiaridade: Frágeis, sensíveis, fortes, negras, brancas,  altas, pequenas, tantas e tantas. Dividem-se em mil e são tão inteiras. Correm para dar conta de tantas contas e não se perdem em resultados tão preciosos. E como as da minha família, são mães, esposas, leoninas, mulheres, vivem numa intimidade profícua entre os compromissos e a liberdade, como se fosse voar.

Voar mais longe que voam,  voar mais perto de tudo.

Voar como mulheres.

quinta-feira, 7 de março de 2013

EU VOLTAREI por CORA CORALINA


 



Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho,
servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.
Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvorede Roseta.
Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.
Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.
E eu morrerei tranqüilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei…
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.
Eu voltarei…

O CAPITÃO E A SEREIA por ANDRÉ NEVES



 


Marinho sempre navegou em sua imaginação marítima por oceanos nunca antes navegados, muito além das terras onde vivia.
Em seus olhos, azuis como o horizonte que une céu e mar, brilhava a vontade de sentir o corpo molhado pelos encantos aquáticos. No coração, também cercado de águas por todos os lados, não havia desejo maior, às vezes calmo, às vezes tenso, como o mover das ondas.

terça-feira, 5 de março de 2013

TANTOS por FÁBIO MONTEIRO




Para quê tanto
Para quê tipo
Para quê tempo
Para quê vento
Para tudo certo
Para ser feliz céu aberto
Para ter novo de novo
Para ter lado o outro
Se para tudo acabou virou
Tantos

segunda-feira, 4 de março de 2013

MEMÓRIAS INVENTADAS por MANOEL DE BARROS



Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós.

PRIMEIRA PESSOA por TATIANA BELINKY


domingo, 3 de março de 2013

A ESTRELA por MANUEL BANDEIRA


Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alto luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.