sábado, 30 de julho de 2022

FRESTAS por Fábio Monteiro




Para um olhar amoroso à escola e à luz que passa por suas frestas, na recepção de cada pessoa à coletividade de todos os dias, entradas e saídas de muitas gentes, complexidade difícil de descrever sem sentir, abrimos portas e janelas para vivenciarmos no chão dela, formas de nomear as diversas maneiras de existir, coexistir e resistir aos seus desafios. Não existe natureza artificial nela, todos estão para a escola como a escola está para os vivos, os pulsantes, os pululantes, exclamantes, como o sangue latino que corre em nossas veias! 

Abrem-se frestas para a leitura de nossa grandiosa coragem de exercê-la. A luz adentra no corpo inteiro, na pele viva, na alma acesa, no exposto sol a sol, dia a dia, todas as noites, no ofício de educar em cada dia que se abre ao novo dia.

E alguns dizem: vocês são corajosos! E nós, educadores, invadidos por luzes caleidoscópicas, assumimos nossa coragem! 

Nosso olhar capta o todo, mas também adentra em pequenos fios de luz para acompanharmos contextos complexos, do nascer ao pôr do sol, num todo que convida a visão atenta ao detalhe: o movimento das aprendizagens, o silêncio criativo de nosso exercício, o barulho de vozes dissonantes que recobra a importância de uma escuta ativa a cada tom, a sonoridade das emoções, o suor da epiderme desvelando o compromisso assumido na educação, consigo e com o outro. 

As frestas dizem sobre a importância de olhar quando ninguém vê.

Há um convite inevitável para todos: passe da porta, apareça na janela, adentre no pátio, escave nas inúmeras camadas de muitas dimensões neste  ofício de muitos olhares e sensações. Venha conosco, num lugar que só é possível no exercício pleno da colaboração e na coletividade de olhares múltiplos, sentimentos diversos, crença em nossa competência, atenções a cada território habitado, inventado, reinventado. 

As frestas assumem um sentido poético na escola, ação de captura do detalhe para o movimento que acontece sempre entre a individualidade que a compõe e o todo que está sempre em expansão. Não é e nem deve ser lugar de sombra constante. É fio de luz para cada lugar que repercute experiências, gestualidades das aprendizagens, clareia desenhos de faz de conta, cria quintais, refaz trajetória, produz memórias, desvelando a importância do olhar apurado ao acontecimento. Lugar de perguntas sem julgamentos prévios. Como pousamos nossa atenção no movimento de tantos acontecimentos? Quando ler a autonomia do trabalho dos educadores e identificar a concepção que rege o trabalho do todo?  Quantos cantos escuros precisam de iluminação nas trajetórias? Quais brechas aparecem para atuações formativas? Que fendas precisam de atenção nas emoções das famílias? Quem somos nós na trajetória de tantos? Onde buscamos oxigênio para nossos pulmões? Qual cartografia reconstruímos toda vez que retornamos à escola e seu território em movimento?

Adentre a porta e encare as construções coletivas de um conhecimento que é sempre maior que a percepção dos sentidos e em respeito a individualidade de cada criança, adolescente e educador registre o acontecimento de adentrar todos os dias num lugar de muitas novidades. Há trabalho efetivo de cada educador e no detalhe minucioso que quase ninguém vê; o espetáculo da formação integral do humano no seu exercício pleno das suas humanidades. 

O broto do conhecimento nascendo, o acolhimento ao choro das crianças, adolescentes; adultos num exercício de recepção às complexidades de cada um num todo de nós. A diversidade cheia de particularidades e que dizem de uma escola que se desdobra em muitas escolas. No esforço real dos educadores numa reinvenção constante para assumir seu protagonismo num lugar reinventado todos os dias, em inúmeras trajetórias cheias de linhas retas e bifurcações. 

Nessa nossa vida, vida de todos os dias, toda vida dedicada à educação; tantos investimentos em diferentes epistemologias, no aprofundamento de conteúdos formativos, no reconhecimento da ciência da educação e suas complexidades, no equilíbrio emocional para as demandas cotidianas, nessa maneira só nossa que encontramos de caminhar no asfalto duro e escrever com giz nossos sonhos e projeções de um futuro mais feliz

Isso nos autoriza a olhar o apurado, o complexo movimento tectônico do chão escola, porque conhecemos sua topologia e sabemos dos seus movimentos intrínsecos que deslocam o relevo que habitamos para escavarmos com as mãos as suas asperezas e belezas. 

NADA É PREVISÍVEL, NADA É ESTÁVEL, TUDO É NOVIDADE NA GRANDEZA DOS DESAFIOS. 

As frestas se abrem para assumir um lugar de mudança, olhar de confiança, para admirar em outras perspectivas o exercício pleno de nossa artesania em nosso ofício. Enquanto nos olham, também aguçamos nosso olhar para o horizonte e ampliamos nossa importância do mundo. Abre-se uma fresta no cansaço e ressurgimos das cinzas com poesia, como semente em solo duro e que insiste em nascer para o mundo, aflorar a paisagem, a mudar o lugar, regando a aridez.

Nós, educadores, queremos olhar a escola sem perder a poética dos espaços habitados. Nos causa dor as negligências acumuladas em nossa existência, mas queremos dizer sobre o nosso amor e ações intencionais no exercício da vida, com vidas nesta pulsão chamada escola. 

As frestas precisam ter a demora de um olhar amoroso e cuidadoso para todos os sujeitos de um processo complexo. Estamos cansados de apressados olhares ao que fazemos, sentidos de vozes que questionam sem o cuidado devido ao nosso esforço, olhares parciais para as dimensões de nosso exercício cotidiano. Agimos com o corpo inteiro, com a mente a mil, com a força de nossas crenças e todos os saberes mobilizados para esse exercício pleno no lugar escolhido, no amor a nossa profissão, numa vida que se desdobra em outras vidas e tocamos flor, jardim, conhecimento, dores, famílias, currículo, valores, princípios, documentações, espaços, planejamentos, intencionalidades, festividades, caminhos, sofrimentos, lutos, desprazeres, frustrações, ações, olhares, muitos olhares, todos os olhares de forma generosa ao outro.

Para cada um de nós, desejo as frestas das curiosidades, o estímulo à pergunta, trajetórias de descobertas! Fio de luz que o convida a olhar a escola e adentrar em cada porta-mundo, corredores-caminhos, pátios-ágoras, salas-universos em dimensões cognitivas, afetuosas e sensoriais. 

Fica o convite: aproveitem as frestas das portas e janelas abertas e entrem na escola agora.

Ela aguarda seu olhar.

Fábio Monteiro – 27/05/2022


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