sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A MARGEM DE DENTRO por FÁBIO MONTEIRO



 
Era único naquelas margens.
No lapso de silêncio rompido pela aspereza da canoa cortando o rio, estava lá, incólume com uma ou duas remadas, alembrado por retratos 3x4 da mulher, da filha, do filho. Apagando, deslembrando, morrendo. Remava para esquerda, arrependendo-se do movimento desperdiçado na outra. O sol escaldante não acalentava seu desejo de chegar ao ponto que saiu e que chegou e que saiu do outro lado para o outro. Nem à noite, alternando entre paradas de pouco sono e o não sonolento rio que corre e corre. Um pouco de homem, um pouco de rio, mas só rio e homem. Na outra, olhava o menino assustado com o rio e a limitada ilha móvel. O homem que habitava a ilha aprisionava seu olhar seco, duro, morto. Imóvel como se olha o rio no seu silêncio enganoso. Não entrava, não gritava, não o via. Era desencontro. E o menino colocava o pano sujo que enrolava a sublimidade de suas intenções e sumia mata adentro, mata a fora, desbravando em soluços um mister de silêncio, palavras, decepção. Na calada, a canoa aproximava sorrateira da margem e pescava como extensão do seu braço, o remo, o cuidado inviolável do menino. Do outro, presa as ferragens de roda. Imóvel. A menina entre babadas e vexames, molhava as roupas vendo os movimentos da canoa e das idas e vindas do menino. Entendia pouco, mas olhava como se entendesse a lógica da imparcialidade. Enxergava e isso bastava na sua incompreensão, na sua imobilidade. Trocavam-na de lugar três vezes ao dia, uma embaixo da árvore, na terra batida, na ponta da casa, mas não perdia o rio, a canoa, o menino, como não mais. A paisagem, pouquinha, e o silêncio soluto entrópico das partes. O menino, a canoa e ela. E talvez outro, cuja imagem se formava em nenhum volume, só traços ínfimos de remadas diluídas num rio maior, menor que tudo, maior que ela. Rio que hora desaguava nos pés, hora descolava da sua órbita, caudaloso, maior em tristeza que. Mas, contentava- se com a natureza daquela dimensão, daquele desassossego, maior que o seu. A margem de um era a fronteira inviolável do outro. Nada rompia o dogma, nada. "Canoaram" e seguiram seus cursos até o fim do seu leito. Na minha companhia. Era o único entre as margens. Ofertando migalhas, lambidas e latidos noturnos.

Inspirado na TERCEIRA MARGEM DO RIO de GUIMARÃES ROSA

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