Desde de minha infância, e durante muitos anos, sempre tive num
cantinho da cabeça a ideia de que existia, algures nas ruas de
Istambul, outro Orhan que era igual a mim, meu gêmeo, ou mesmo meu duplo. Não consigo recordar-me donde me veio nem como nasceu esta impressão. Teria acabado por me surgir, certamente, na sequência de um longo período entretecido de mal-entendidos, de coincidências, de jogos e de angústias. Deixem-me contar-lhes um dos primeiros momentos em que vivi mais concretamente, e assim explicar o que senti quando se manifestou em mim.
[...]Chegamos agora ao cerne da questão: desde o meu nascimento que nunca abandonei as casas, as ruas e os bairros das minhas origens. Se que há uma ligação entre o fato de habitar ainda e sempre, cinquenta anos depois(mesmo que tenha morado ocasionalmente noutros locais de Istambul), na Residência Pamuk, a partir da qual a minha mãe me deu a conhecer o mundo pela primeira vez, comigo ao colo, e na qual foram tiradas as minhas primeiras fotografias, e a consolação que consiste em acreditar na ideia de que existe outro Orhan noutro ponto de Istambul. É por isso que sinto que a minha história tem algo de especial para a cidade e para mim próprio: numa época marcada pela abundância das migrações e pela criatividade dos migrantes continuei no mesmo lugar e na mesma casa durante meio século. A minha mãe dizia-me sempre num tom de tristeza: "Sai, vai a outro lado, faz uma viagem".
[...]Quem quer dar um sentido à sua existência interroga-se também, pelo menos uma vez na vida, sobre a situação e a época em que nasceu. O que significa nascer em certo lugar do mundo e em determinado momento da História? A família, o país, a cidade que nos são atribuídos como um bilhete de loteria, que nos pedem que amemos e que acabamos por amar na maior parte das vezes, serão fruto de uma partilha equitativa? Por vezes, ao ver as ruínas e as cinzas do Império Otomano, sinto que tive azar em nascer em Istambul, em nascer nesta cidade a envelhecer num ambiente de derrota, de miséria e de tristeza. (Porém, uma voz dentro de mim diz-me que não, que isso, na realidade, é uma sorte). No que toca a riqueza, acontece-me pensar às vezes que tive sorte em nascer numa família abastada de Istambul. [...] Na maior parte do tempo, contudo, penso que Istambul, o lugar onde nasci e onde passei toda minha vida, faz parte do meu destino - tanto como o meu corpo (Se ao menos pudesse ter os ossos um pouco mais largos e fosse um pouco mais bonito...)e o meu sexo, coisas de que acabei por me convencer que não devia queixar-me - e que, fazendo parte do meu destino, não pode ser posto em questão. Este livro é sobre esse destino...